Antecipar-se às pandemias do futuro

Antecipar-se às pandemias do futuro

Mais de um século depois da Revolta da Vacina no Rio de Janeiro – a série de protestos urbanos ocorridos em 1904 em resposta à obrigatoriedade de vacinação contra a varíola – o anúncio da pandemia da COVID-19 pela Organização Mundial da Saúde, em março de 2020, voltou a envolver o Brasil em incertezas, num contexto de informações falsas e de desconfiança.

Sob um governo de extrema direita eleito em 2018, o país se tornou uma manifestação categórica de como a conjuntura política é capaz de recrudescer uma pandemia ao invés de controlá-la. Assim, superando a lamentável marca de 686 mil mortos pela COVID-19 (em outubro de 2022), o Brasil é o segundo país que mais mortes por COVID registrou no mundo e o décimo terceiro em termos relativos, com uma estimativa de 3,170 pessoas mortas por milhão de habitantes.

“É preciso pensar sobre como podemos nos antecipar às pandemias do futuro, afinal, sabemos que elas virão.”

Num momento em que governos de todo o mundo criaram estratégias de controle e restrição na circulação de pessoas, ampliaram os investimentos em pesquisa científica e no fortalecimento dos sistemas de saúde, a população brasileira observou as escolhas deliberadas de suas lideranças de negar as recomendações científicas relativas ao controle da disseminação do vírus. Essa negação se traduziu em menosprezo sistemático ao uso de máscaras em locais públicos, descarte da promulgação de decretos de isolamento social, promoção de aglomerações, propaganda de medicamentos contra a COVID-19 que não possuem comprovação científica e postergação da compra de vacinas.

Se, no plano imediato, estima-se que essas ações resultaram em 120 mil mortes evitáveis, só no primeiro ano,1 a pandemia da COVID-19 contribuiu também para aprofundar velhas feridas sobre a compreensão da dignidade humana num espaço público marcado pela desvalorização da vida – especialmente a dos grupos mais vulneráveis – a negação da ciência, a promoção de discursos polarizantes, a disseminação de notícias falsas e o desdém diante do sofrimento dos outros.

Apesar dos evidentes resultados conquistados pela ciência no último século, como a erradicação de doenças endêmicas e epidêmicas, seguimos nos permitindo conduções irresponsáveis em contextos em que erros custam vidas. Assim coloca-se a pergunta: o que fazer para não repetirmos os mesmos erros? É preciso pensar sobre como podemos nos antecipar às pandemias do futuro, afinal, sabemos que elas virão.

“Afinal, ao questionar o passado, podemos transformar e elaborar o presente, para melhor enfrentar o futuro.”

Em resposta a essa pergunta, em 2021 um grupo de profissionais de diversas áreas desenvolveu uma proposta para criar um Museu Brasileiro da Pandemia. Em fase de viabilização e captação de recursos, o projeto quer preservar e divulgar a memória da pandemia da COVID-19, com ênfase no seu impacto social, na resposta do sistema público de saúde, nas políticas adotadas e, sobretudo, na capacidade da sociedade de resistir e de se organizar para o seu enfrentamento.

O Museu Brasileiro da Pandemia nasce buscando entender a pandemia no contexto da história brasileira e sob a perspectiva dos impactos nos grupos sociais em situação de maior vulnerabilidade. Com linguagem comprometida com a promoção da verdade e da memória, o museu tem o objetivo de reforçar o ideal do conhecer para não repetir. Isso significa sensibilizar o público sobre a relevância das mudanças climáticas, decisivas no surgimento de pandemias, e sobre as políticas públicas que resultaram em violações de direitos humanos no enfrentamento da crise sanitária.

Assim como existem centenas de museus no mundo todo que convidam os seus visitantes a refletir sobre as causas e as consequências de grandes injustiças passadas – como o Holocausto, o genocídio no Camboja ou em Ruanda, as ditaduras no Cone Sul da América Latina, e muitas outras – o projeto pretende ser um repositório de memórias da pandemia, e assim se tornar peça de um amplo processo pedagógico que nos permita, como sociedade, compreender o passado e não repetir os mesmos erros. Afinal, ao questionar o passado, podemos transformar e elaborar o presente, para melhor enfrentar o futuro. Compreender o Museu Brasileiro de Pandemia como um espaço educativo amplo, inclusivo e democrático é um compromisso institucional e um convite para que a população entre em contato com questões relativas à memória, à ciência e à responsabilidade no Brasil.

Esse componente pedagógico articula os eixos estruturadores da proposta de criação do Museu, a fim de construir consciência crítica e reforçar a resiliência na sociedade brasileira. O Museu quer trazer as vítimas para o primeiro plano do debate público, permitindo que toda a sociedade se solidarize com seu sofrimento e considere as causas do desproporcional impacto que a COVID-19 teve, e ainda tem, no Brasil. Contudo, o projeto não se limita a ser um lugar de memorial das vidas perdidas: a meta é que ele funcione também como grito de alerta para as gerações futuras de que certos comportamentos – especialmente por parte de autoridades que têm como obrigação principal cuidar da vida dos cidadãos – são inadmissíveis e indesejáveis para a vida e o futuro da coletividade. O projeto acredita e aposta que esse processo vai contribuir para reforçar a cultura democrática no Brasil e trazer novas concepções de cidadania, responsabilidade e cuidado para com o outro, a partir da reafirmação do conceito de dignidade humana e dos valores que embasam os direitos humanos.

Ainda que um museu não possa evitar pandemias futuras, ele pode realizar o trabalho fundamental de compreender o modo pelo qual essas futuras pandemias podem e devem ser enfrentadas.

Igualmente, num país que sistematicamente rejeitou aprender com os erros do passado, o momento oferece um ponto de inflexão muito importante para abordar com sensibilidade, pensamento crítico e honestidade as causas e as consequências da violência estrutural do país – e assim contribuir para a construção de um futuro melhor, orientado por ideias de solidariedade e justiça social.

Clara Ramírez Barat Directora del Programa de Políticas Educativas Warren en el Instituto Auschwitz para la Prevención del Genocidio y las Atrocidades Masivas
Leandro dos Santos Magalhães Arquitecto, socio y co-fundador de Equipe B Arquitetura

Clara Ramírez Barat  Directora del Programa de Políticas Educativas Warren en el Instituto Auschwitz para la Prevención del Genocidio y las Atrocidades Masivas
Leandro dos Santos Magalhães  Arquitecto, socio y co-fundador de Equipe B Arquitetura
Clara Ramírez Barat  Directora del Programa de Políticas Educativas Warren en el Instituto Auschwitz para la Prevención del Genocidio y las Atrocidades Masivas
Leandro dos Santos Magalhães  Arquitecto, socio y co-fundador de Equipe B Arquitetura